O Garoto da Bicicleta
REALISMO EM BUSCA DA EMOÇÃO

Em virtude do lançamento de O Garoto da Bicicleta em DVD na 2001, entrevistamos Jean-Pierre Dardenne, diretor do filme ao lado de seu irmão, Luc
O cineasta belga Jean-Pierre Dardenne discute seu trabalho mais recente e seus métodos de trabalho ao lado do irmão, Luc, em entrevista exclusiva para a Revista da 2001 Vídeo de Maio.
Por Eduardo Lucena
2001: Como surgiu o projeto de O Garoto da Bicicleta?
Jean-Pierre Dardenne: A ideia veio por meio de uma notícia que lemos durante uma viagem ao Japão, sobre um garoto que tinha sido abandonado em um orfanato por seu pai, que prometeu ir buscá-lo, mas não foi. O garoto acabou fugindo para procurar o pai.

No tapete vermelho do Festival de Cannes em 2011, Jean-Pierre, Thomas Doret, Cécile De France e Lud Dardenne
2001: Onde vocês acharam o ótimo Thomas Doret, intérprete do garoto do título?
JPD: Fizemos testes com diversos atores para achar aquele que seria o protagonista. Thomas foi o quinto garoto do primeiro dia de testes. Todos os garotos interpretavam a primeira cena do filme (de uma maneira mais simplificada, é claro). Quando vimos a atuação de Thomas falando ao telefone, soubemos imediatamente que ele seria o protagonista. Ele demostrou uma força e uma sensibilidade que nos impressionaram.
2001: Além de filmar pela primeira vez no verão, há também algumas inserções de trilha sonora, algo que vocês costumam evitar. Por que essas exceções agora?
JPD: Achamos que a luz do filme combinava mais com o verão. Mesmo na Bélgica, nem sempre faz sol no verão, mas tivemos sorte em filmar algumas cenas, como as de Cécile De France e Thomas Doret passeando de bicicleta ao ar livre. A luz e a estética do filme combinavam com essa estação. Em relação à música, queríamos que ela funcionasse como um carinho para o personagem. Essa criança, que foi abandonada, precisa de carinho. Ela não vive como uma criança deveria viver. Ela precisa sair dessa solidão e queríamos que a música viesse pontualmente, como uma forma de acariciar essa criança que vive essa dura realidade.

Thomas Doret e Cécile De France em cena do filme mais solar e esperançoso dos irmãos Dardenne
2001: Novamente, há uma mistura de atores profissionais com estreantes. Fale sobre o processo de ensaios e a imersão dos atores.
JPD: Trabalhamos basicamente com ensaios. Nós ensaiamos diariamente com os atores todas as cenas, um mês antes do início das filmagens. Primeiro, começamos com as cenas mais físicas – porque, para nós, os atores devem incorporar os personagens por meio do físico. Começamos com Thomas, por exemplo, na cena da briga com os garotos. E depois partimos para as cenas com mais diálogos.
2001: Sua câmera segue os atores como um detetive, sempre muito próxima ao protagonista, Cyril.
JPD: No caso deste filme, achamos que a câmera deveria trabalhar mais como observadora, mantendo um pouco de distância do personagem principal. Queriamos mostrar a solidão na qual esse garoto vivia, e para isso achamos que a câmera deveria ficar um pouco mais distante, apenas observando o personagem.
2001: Em O Garoto da Bicicleta, assim como em O Filho, temos um menino abandonado no centro dos conflitos. Vocês têm alguma experiência pessoal ou fizeram algum tipo de pesquisa específica sobre o tema?
JPD: Não foi uma experiência pessoal, e sim uma notícia que nos fez ter a ideia de contar essa história de abandono de um garoto por seu pai. Além do abandono, queríamos falar da promessa que foi feita ao menino e não foi cumprida. O pai prometeu que iria buscá-lo no orfanato, mas não foi. E era sobre isso que mais queríamos falar.
2001: Jérémie Renier [Guy, o pai do garoto Cyril] também interpretou um pai imaturo em A Criança (2005). Foi uma escolha proposital?
JPD: Não. Não queríamos falar sobre um pai imaturo. Na verdade, a escolha do ator se deu exclusivamente porque gostamos muito de trabalhar com Jérémie; nos comunicamos bem com ele e apreciamos seu trabalho. Quando terminamos o roteiro, achamos que ele seria um bom intérprete para o personagem do pai. Achamos que ele interpretaria bem um pai descuidado, que não se importa com seu filho.

Ator de A Criança e O Silêncio de Lorna, Jérémie Renier volta a trabalhar com os Dardenne em O Garoto da Bicicleta
2001: O filme aborda também um fenômeno comum, o crescente número de mulheres que criam seus filhos sozinhas. Esse é um tema que vocês tentaram enfocar?
JPD: Queríamos falar sobre uma criança que é abandonada e que encontra alguém que quer lhe dar amor, tirando-a dessa solidão. Pensamos que essa pessoa só poderia ser uma mulher, porque não conhecemos nenhum homem que faça isso. Nenhum homem que seja capaz de cuidar sozinho de uma criança e ser pai e mãe ao mesmo tempo. Mas não era essa história que queríamos contar, e sim a história de um garoto que está sozinho e tem a oportunidade de receber amor. Queríamos saber se ele aceitaria esse amor ou não.
2001: Uma curiosidade dos fãs de cinema: como você e seu irmão [Luc Dardenne] dividem o trabalho?
JPD: Normalmente, fazemos tudo juntos. A unica exceção é o roteiro. Para construir o roteiro, meu irmão Luc é o motor. Ele trabalha sozinho e depois nós discutimos juntos. De resto, fazemos tudo juntos: a composição dos personagens, os ensaios com os atores, o figurino, a montagem do set de filmagens etc.

Dupla de diretores mais importante do cinema europeu hoje, Luc e Jean-Pierre Dardenne tiveram cinco de seus filmes premiados nos Festival de Cannes, dois deles com a Palma de Ouro
2001: Após mais de 30 anos de trabalho, desde o formato documentário até seus últimos longas-metragens, o que os inspira e encoraja a continuar narrando histórias humanas (e universais) como a de O Garoto da Bicicleta?
JPD: O que nos estimula a continuar contando histórias é a tentativa de compreender o mundo atual. No caso de O Garoto da Bicicleta, o que nos estimulou foi a vontade de entender como o ser humano pode conviver com a adversidade hoje. Como é possivel ser solidário, ajudar alguém no mundo tão conturbado em que vivemos. São essas questões que nos estimulam a contar mais histórias.
Irmãos Dardenne
Os Grandes Humanistas do Cinema Contemporâneo

Jean-Pierre Dardenne nasceu em Liége (Bélgica), em 21/4/1951. Seu irmão, Luc Dardenne, em 10/3/1954, em Awirs (também na Bélgica). Os dois produzem, escrevem e dirigem seus filmes. Em 1978, realizaram o primeiro de seus documentários, Le Chant du Rossignol. Estrearam na direção de longa de ficção com A Promessa (1996), que já abordava a situação de imigrantes na Bélgica. A consagração internacional veio três anos depois, com a Palma de Ouro em Cannes por Rosetta, premiação obtida também por A Criança (2005). Afeitos a questões sociais e atentos à realidade européia, os irmãos Dardenne criaram um estilo próprio, marcado pelo despojamento estético, filmagens em continuidade, ausência de trilha sonora e câmera muito próxima dos atores. Como se ouvíssemos sua respiração, seus atores precisam comer, sentir frio, brigar, correr, enfim, viver todas as emoções de seus personagens.
Em busca de um minimalismo narrativo sem concessões para o espectador, os irmãos Dardenne tornaram-se mestres do drama social, sem cair no melodrama barato. A sensação que se tem ao ver um filme da dupla é a de se assistir a um vídeo caseiro (mas bem filmado) com a urgência da realidade, com seres humanos imprevisíveis e capazes de atos condenáveis. Em seu cinema, o indivíduo é falível – como todos nós.
MAIS IRMÃOS DARDENNE NA 2001:

O Silêncio de Lorna (2008)
Cada um com seu Cinema (2007), curta Dans L’Obscurité
A Criança (2005)
O Filho (2002)